domingo, 9 de junho de 2013


EDITORIAL

Dias terríveis vivemos. Parece até que chegamos à última crise de que falava Blanc de SAINT-BONNET, o grande pensador católico do século XIX. Já não há convicções, já não há princípios que defender. 
Os homens de boa vontade, debalde se perguntam onde está a verdade. Tudo é objeto de discussão e nada se sustenta diante do império da opinião: eis o princípio em que se assenta a decantada e aureolada democracia. Daí a análise acertada de Jean MADIRAN: “Data terrível na história do mundo moderno aquela em que os homens decidiram que, doravante, a lei seria a expressão da vontade geral, quer dizer, a expressão da vontade dos homens; o dia em que os homens decidiram dar a si mesmos sua lei; o dia em que declinaram no plural o pecado original. Pecado fundamental, rebelião essencial pela qual o homem quer dar a si mesmo sua lei moral, afastando a que havia recebido de Deus. Em 1789 esta apostasia se fez coletiva. Se converteu no fundamento do direito político. A democracia moderna é a democracia clássica em estado de pecado mortal”.
A partir de então, se uma maioria decide que o círculo é quadrado e que o roubo é uma virtude, não nos resta senão adequarmo-nos à lei, pois, afinal, ela é a expressão da vontade geral, da vontade do povo. Frente a ela nada resiste. Como dizia o insuspeito Albert CAMUS no princípio de seu livro O homem revoltado: “Se nada é verdadeiro nem falso, bom ou mau, a regra será mostrar-se o mais eficaz, quer dizer, o mais forte”. Um agnóstico como Charles MAURRAS, soube prognosticar com agudeza: “sem a unidade divina e suas conseqüências de disciplina e de dogma, a unidade mental, a unidade moral, a unidade política desaparecem ao mesmo tempo: não se podem recobrar sem que se restabeleça a unidade primeira. Sem Deus, não existe o verdadeiro, nem o falso, nem o direito, nem a lei. Sem Deus, uma lógica rigorosa equipara a pior das loucuras às razões mais perfeitas”. João Paulo II dizia – não sem razão – que “a verdade não pode ter como medida a opinião da maioria”; mas que fazer se a “opinião” é o próprio fundamento da democracia como a entenderam os revolucionários de 1789? Com efeito, o pluralismo ideológico – corolário dessa mesma democracia – colocou sobre a agenda da justiça a tarefa de proclamar os critérios morais da sociedade e assim – como acentua o jurista espanhol Antonio LÓPEZ PINA – “os tribunais constitucionais substituíram as igrejas na tarefa de definir os parâmetros morais da cultura”. É o que fez o STF ao reconhecer a “união estável” entre homossexuais e declarar a morte jurídica dos pequeninos seres que padecerem de anencefalia. Hoje não se crê em nada e a ausência do tribunal do Senhor no foro íntimo se testemunha pelo caráter terrífico de nossas instituições políticas, como assinala Rubén CALDERÓN BOUCHET. Nunca houve na história tão boas intenções e pretextos justiceiros. Nunca o poderoso foi mais egoísta e brutal e o pobre mais ressentido e invejoso. Mais direitos do homem, da mulher e do animal. Nunca se massacrou tanta gente com mais frieza e com mais falta de sentimentos humanitários. É interessante notar a sincronia de ação com que os grupos abortistas atuam em todo o mundo em sua obstinada e perversa luta pela legalização da matança dos pequeninos no ventre materno. Hoje se fala dos chamados “direitos trágicos de uma sociedade desestruturada”, que sancionam condutas alheias a toda coação social e política (liberdade negativa, considerada a única forma de liberdade verdadeira). Não é isso que vemos no Programa Nacional de Direitos Humanos-3 (PNDH-3) e no atual Projeto de Código Penal que tramita no Senado?
Vivemos, pois, uma época de “desligação” – de ausência de vínculos, raízes, laços – época que padece da ausência de fundamentos, que tem como conseqüência a perda da saúde espiritual. Esta enfermidade do espírito é como a anemia profunda de que fala George BERNANOS: “O sintoma mais geral dessa anemia espiritual, constatarei com segurança: a indiferença ante a verdade e a mentira (...)”. E acrescenta: “Essa indiferença oculta, melhor, um cansaço, uma espécie de asco da faculdade de julgar. Mas a faculdade de julgar não pode exercitar-se sem certo compromisso interior. Quem julga se compromete. O homem moderno já não se compromete por que já não tem nada que comprometer”. Em sua Carta ao General X, não evocava Antoine de SAINT-EXUPÉRY esse “gado doce, educado e tranqüilo, extraordinariamente bem castrado”?
Hoje compreendemos melhor as palavras de Nossa Senhora em La Sallete no ano de 1846: “Os governantes civis terão todos um mesmo objetivo, que consistirá em abolir e fazer desaparecer todo princípio religioso para dar lugar ao materialismo, ao ateísmo, ao espiritismo e a toda espécie de vícios”. No entanto, é necessário lembrar o que disse o Padre Henri RAMIÈRE, apóstolo eminente do ideal de Cristo Rei: “A sociedade depois de ter seus fundamentos morais gradualmente minados pelo egoísmo, em vez de se expandir sem cessar e fortalecer, desmorona-se e cai numa ruína completa. Sucedeu, quase sempre, que os responsáveis pela construção recusaram a influência salutar da Igreja”.

Fernando Rodrigues Batista

O GOL CONTRA DO ESTATUTO DO NASCITURO: (Versão atual do projeto pode reforçar a doutrina do aborto “legal”)





O Estatuto do Nascituro (Projeto de Lei 478/2007) foi elaborado com a intenção de proteger a criança por nascer (o nascituro) e afastar definitivamente de nosso país o fantasma do aborto. O texto original, apresentado pelo Pró-Vida de Anápolis em 2004, sofreu um grande empobrecimento:


a) Foi excluída a proteção penal prevista para o nascituro.

b) Foi excluída também a importantíssima afirmação de que o nascituro é pessoa, conforme estabelecido no Pacto de São José da Costa Rica. Sem o reconhecimento explícito da personalidade do nascituro, os direitos a ele atribuídos serão interpretados como meras “expectativas de direitos”, como hoje fazem tantos doutrinadores.

c) Mas o pior de tudo é que a atual versão é capaz de fortalecer a opinião (falsa) de que no Brasil o aborto é “legal” quando a gravidez resulta de estupro (art. 128, II, CP).

A tragédia ocorreu em 19/05/2010, quando o PL 478/2007 estava em votação na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara dos Deputados. O que estava em votação era a versão – já bastante empobrecida – do substitutivo apresentado pela relatora deputada Solange Almeida (PMDB/RJ). Os abortistas argumentaram que o artigo 13 do substitutivo, ao oferecer proteção e assistência ao nascituro concebido em um estupro, iria extinguir o (suposto) “aborto legal” (art. 128, II, CP) no país.
Seria de se esperar que os deputados pró-vida replicassem que no Brasil não existe “aborto legal” a ser extinto. Se estivessem juridicamente preparados para o debate, eles explicariam aos adversários que o Código Penal não “permite” (nem poderia permitir) o aborto em caso algum; apenas deixa de aplicar a pena ao criminoso se o crime já foi consumado1. O despreparo dos pró-vida, porém, era completo. Foi desolador presenciar como eles

• concordaram que o aborto legal existe (!)

• e afirmaram veementemente que o Estatuto do Nascituro não revogaria esse “direito” de abortar.

Nessa partida de futebol em que todos chutavam para todos os lados, acabou ocorrendo um gol, mas um “gol contra”. O deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB/SP), com a intenção de acalmar a discussão, sugeriu à relatora que fizesse uma “complementação de voto” a fim de assegurar que o Estatuto do Nascituro não revogaria o suposto aborto “legal” contido no artigo 128, II do Código Penal. Solange Almeida (PMDB/RJ) aceitou a proposta. Fez uma complementação de voto a fim de assegurar – pasmem! – que os direitos do nascituro concebido em um estupro (art. 13 da proposta) não extinguiriam o suposto direito de o médico matá-lo! Os direitos do bebê foram mantidos, porém, “ressalvados (sic) o disposto no Art. 128 do Código Penal Brasileiro”. Esse deplorável enxerto, tremendo gol contra feito pelos pró-vida, foi aprovado pela Comissão de Seguridade Social e Família naquela sessão.
A proposta está agora para ser votada na Comissão de Finanças e Tributação, tendo como relator o deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ). O relator deu parecer favorável ao projeto, com uma pequena emenda para adequação financeira: “Esta lei entra em vigor na data de sua publicação e surtirá efeitos financeiros a partir do primeiro dia do exercício seguinte ao de sua publicação”. E quanto ao texto inserido na última hora pela antiga relatora Solange Almeida? Permanece como estava. E agora?

A propaganda do gol contra

Por estranho que pareça, o Movimento Brasil Sem Aborto vem se mobilizando para aprovar o Estatuto do Nascituro sem mostrar nenhuma preocupação quanto ao enxerto nele introduzido. Ao contrário, em uma mensagem divulgada pelo Movimento, parece até que ele faz propaganda do gol contra. A fim de que o projeto seja aprovado, pede-se aos cidadãos que digam aos deputados que:
... o Substitutivo deste Projeto de Lei em análise na Comissão de Finanças e Tributação NÃO MODIFICA o Código Penal Brasileiro no que se refere à EXCLUDENTE DE PUNIBILIDADE quando à gravidez resultante de violência sexual (estupro). Em relação a esta questão o Estatuto do Nascituro não revoga, portanto, o que está disposto no artigo 128 do Código Penal Brasileiro 2.
No texto acima, o enorme destaque tipográfico é do original.
Tem-se a impressão de que o Movimento Brasil Sem Aborto faz do gol contra uma glória da versão atual do Estatuto do Nascituro.

O que pode acontecer

Se o Estatuto do Nascituro for aprovado como está – com o apoio de passeatas e coletas de assinaturas – a criança por nascer poderá sofrer um terrível golpe. É verdade que, o artigo 128, CP, citado na complementação de voto da deputada Solange Almeida, não fala de uma permissão para aborto. No entanto, é necessário observar três coisas:
A primeira é que, quando a deputada fez sua complementação de voto, estava convencida de que o aborto “legal” existia e desejava conservar esse suposto “direito” de matar a fim de aquietar os abortistas.
A segunda é que todos os deputados pró-vida presentes naquela sessão acompanharam e aprovaram esse entendimento errôneo da relatora.
A terceira é que, se esse enxerto for mantido (Deus não o permita!), ele servirá para reforçar a tese de que existe o aborto “legal” no país. Com efeito, ao ler o texto do artigo 13 (“O nascituro concebido em decorrência de estupro terá assegurado os seguintes direitos, ressalvados o disposto no Art. 128 do Código Penal Brasileiro), os doutrinadores perguntarão a si mesmos: por que essa ressalva? E poderão concluir: tal ressalva seria desnecessária se o artigo 128 do Código Penal não permitisse o aborto. Logo, dirão eles que, com base no Estatuto do Nascituro(!), o aborto é permitido quando a gravidez resulta de estupro.

Por que não outros projetos?

É lamentável que o Movimento Brasil Sem Aborto esteja concentrando todas as suas forças em aprovar uma versão distorcida do Estatuto do Nascituro. Infelizmente não é verdade o que está escrito no convite para a 6ª Marcha Nacional da Cidadania pela Vida (de 04/06/2013): “aprovar o Estatuto do Nascituro é impedir, definitivamente, que o aborto seja legalizado em nosso país”3.
Por que o Movimento Brasil Sem Aborto não se mobiliza pela aprovação de outros projetos – estes sim de efeito imediato na proteção do nascituro? Eis dois exemplos:
1) A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.º 164, de 2012, de autoria do deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ), que pretende inserir no artigo 5º de nossa Constituição as sagradas palavras “desde a concepção” após “a inviolabilidade do direito à vida”. Até hoje essa PEC está parada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) aguardando a designação de um relator.
2) O Projeto de Decreto Legislativo (PDC) n.º 565, de 2012, de autoria do deputado Marco Feliciano (PSC/SP), que pretende sustar a decisão do STF que declarou não ser crime o aborto de crianças anencéfalas. Até hoje o projeto aguarda o julgamento de um recurso (REC 148/2012) contra a decisão do então presidente da Câmara, Marco Maia (PT/RS), que o considerou “inconstitucional”.
Um detalhe importante: ambas as proposições acima – a PEC 164/2012 e o PDC 565/2012 – não passarão pela mesa da Presidente da República! O Congresso poderá promulgá-las sem interferência de Dilma Rousseff. Ao contrário, o Estatuto do Nascituro (PL 478/2007), mesmo que seja corrigido e só depois aprovado, poderá ser vetado, total ou parcialmente, pela nossa Presidente. E a derrubada de um veto presidencial pelo Congresso é praticamente impossível, pois requer a maioria absoluta dos deputados e senadores (art. 66, §4º, CF).

Conclusão

No Movimento Brasil Sem Aborto há grandes amigos meus, verdadeiros pró-vida, que desejam extirpar o aborto do Brasil e não poupam esforços para esse fim.
É preocupante, porém, que o Movimento não tenha entendido o perigo da aprovação irrestrita e incondicional da atual versão do Estatuto do Nascituro. Os milhares de cidadãos que colocam seus nomes no abaixo-assinado não estão sendo advertidos sobre isso.
É lamentável ainda que esse Movimento, ao contrário dos outros grupos pró-vida, evite sistematicamente levantar a bandeira da defesa da família. Evita-se falar contra a exaltação do homossexualismo e a união de pessoas do mesmo sexo.
Enfim, esse Movimento tem sempre procurado poupar o Partido dos Trabalhadores (PT). Nas eleições presidenciais de 2006, não encontrei no portal do “Brasil Sem Aborto” nenhuma referência ao programa de governo do candidato Lula, do PT, que previa, em seu segundo mandato, a legalização do aborto. No entanto, lembro-me de o portal ter exibido “45 razões para não votar em Geraldo Alckmin”, adversário do candidato petista...

Anápolis, 09 de maio de 2013.

Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz

Presidente do Pró-Vida de Anápolis

***

1 Em Direito Penal, isso se chama “escusa absolutória”. O crime permanece, mas o agente não recebe aplicação da pena, por razões de política criminal.

2 http://brasilsemaborto.com.br/index.php?action=noticia&idn_ noticia=279&cache=0.8559996571857482

3 http://brasilsemaborto.com.br/index.php?action=areafixa&id=10&cache=0.2957184533588588

PROJETO DE CÓDIGO PENAL “CÓDIGO DE MORTE PRESTES A DESABAR SOBRE A CABEÇA DOS BRASILEIROS”

Transcrevemos aqui a Introdução do livro “Projeto de Código Penal ‘Código de morte’ prestes a desabar sobre a cabeça dos brasileiros” (São Paulo: IPCO, 2013, p. 9-12), do ilustre Procurador de Justiça do Estado de Santa Catarina, Dr. Gilberto CALLADO DE OLIVEIRA. O autor é Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de Navarra (Espanha) e pós-doutor em política jurídica (1994 e 2000) e filosofia penal (2007), professor da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) e da Escola do Ministério Público de Santa Catarina. É de sua lavra a substanciosa obra A verdadeira face do Direito Alternativo (Curitiba: Juruá, 1995, com prefácio do insigne jurista paranaense René Ariel Dotti) e o atualíssimo Garantismo e Barbárie: a face oculta do garantismo penal (São Paulo: Conceito, 2011).

 Na história da legislação penal brasileira, após entrar em vigor o atual Código Penal, em 1 de janeiro de 1942, alguns anteprojetos da parte especial de um novo código foram elaborados para a dificílima empresa de incorporar um coerente sistema codificado. Destacam-se os anteprojetos de Nelson Hungria (1969), Luiz Vicente Cernicchiario (1984) e Evandro Lins e Silva (1999), todos colocados nos escaninhos do tempo.
Em 2011, através do Requerimento n. 756, o Senador Pedro Taques solicitou a constituição de uma Comissão de Juristas com a finalidade de “elaborar projeto de Código Penal adequado aos ditames da Constituição de 1988 e às novas exigências de uma sociedade complexa e de risco”.
Formada a Comissão, em 18 de outubro de 2011, os trabalhos foram concluídos no curto período de oito meses, e o relatório final do anteprojeto entregue ao Presidente do Senado Federal, em 18 de junho de 2012, transformado depois no Projeto de Lei do Senado n. 236, de 2012. Fixou-se então exíguo calendário de tramitação, com conclusão determinada para os cinco dias úteis de 28/09 a 04/10/2012.
Quanto à forma, muitos dos seus 543 artigos ofendem a boa técnica legislativa. As normas orientadoras da parte geral contêm uma linguagem excessivamente abstrata e recheada de imprecisões sobre diversos institutos aplicáveis aos delitos, que em nada favorece o exercício exegético e a segurança jurídica. Na parte especial, a falta de clareza e de precisão predomina em muitas qualificações de condutas delitivas, além da vulgaridade que substitui a tradicional redação em alguns crimes sexuais.
À exceção de algumas audiências públicas, frequentadas notadamente por grupos de pressão – v.g. organizações de defesa dos animais e da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) –, a redação do anteprojeto não se submeteu à exaustiva análise de diversos segmentos da sociedade, nem muito menos da comunidade jurídica especializada, da voz abalizada de magistrados, de membros do Ministério Público, de advogados, de professores, de autoridades e agentes policiais. Preteriu-se até mesmo o trabalho revisional de festejados penalistas, como o fizeram, em sua época, Nelson Hungria, Narcélio de Queiroz e Roberto Lira, revisores do projeto de Alcântara Machado, convertido depois no atual Código Penal. Não se deram ouvidos ao magistério da Igreja. Não se abriu o caderno de sugestões no prudente período de tempo para o amadurecimento de opiniões, dos estudos, das pesquisas e até mesmo de um plebiscito para questões vitais a milhões de brasileiros. Nem se invocou a proteção de Deus, como o fez o preâmbulo da Constituição Federal.
Também por isso, quanto ao mérito, o Anteprojeto de Reforma do Código Penal atenta gravemente, contra os mandamentos da Lei de Deus e, numa ousadia perversa, subverte a ordem hierárquica da criação, deixando de punir assassinatos abomináveis.
De fato, muitos dos artigos apresentados no Relatório Final destacam-se pela profunda falta de proporcionalidade entre crimes e penas, entre a proteção de alguns bens e a de outros, entre o que deve ser proibido e o que deve ser permitido, embora não seja esta a finalidade das normas penais senão os efeitos jurídicos que elas visam produzir por causa de sua desobediência.
Concretamente, a tipificação e a reprovação de crimes contra a pessoa e contra interesses de grupos específicos produziram verdadeiros absurdos. O crime de aborto está praticamente abolido, restando apenas a hipótese de não consentimento da gestante, efetivamente passível de punição; o crime de homicídio doloso através da eutanásia livrou-se da sanção penal sob a rubrica antinômica da piedade e o de infanticídio perdeu sua importância e gravidade a ponto de se transformar em uma banalidade, como a simples suspensão do processo. Também foram tratados com excessiva brandura outros crimes contra a pessoa, enquanto crimes contra a fauna e a flora receberam descomunal reprovação. Tomem-se, por exemplo, os crimes de omissão de socorro de criança abandonada ou de lesões corporais, cuja pena mínima é doze vezes inferior (um mês de prisão) à do crime de omissão de socorro de qualquer animal que esteja em grave e iminente perigo (um ano de prisão). Outros absurdos, ademais, são encontrados no corpo de normas do malsinado Projeto de Lei.
Os brasileiros certamente ficaram estupefatos diante dessa barbárie penal, e sentir-se-ão inseguros pela facilidade com que se manipula ideologicamente o direito à vida. Vale aqui lembrar a séria advertência de José Antônio Ureta: “Quando o direito à vida de um único ser humano inocente deixa de ser garantido, a vida de todos passa a correr risco. Basta ficar incluído na categoria errada” (Revista Catolicismo, n. 698, fevereiro de 2009, p. 34).
Uma pergunta logo se impõe diante de tantos absurdos: como se explica que uma classe de intelectuais, na posição de juristas, tenha se dedicado, de maneira irracional, à construção de diferentes tipos penais carregados de fórmulas materialistas ou imanentistas? Não é difícil encontrar a resposta: os membros da Comissão de Revisão simplesmente redigiram um “código de morte” como atitude ideológica profundamente marcada pelas recomendações governamentais do Plano Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3). Suas injustificáveis despenalizações e descriminalizações de condutas violadoras de direitos fundamentais dão mostras inequívocas de que não há limites para o processo de transformação da sociedade, e o sistema punitivo parece ser o caminho ideal para isso. Julgam eles que as questões mais agudas do problema da criminalidade podem ser resolvidas com normas compassivas e utópicas, mesmo que, no fundo, potencializam a maldade e a indiferença com o dom sagrado da vida humana.
A responsabilidade dos nossos parlamentares, ante essa investida revolucionária, só pode ser a de rechaçar todas as propostas incompatíveis com os verdadeiros anseios da sociedade brasileira, historicamente tradicionalista, cristã, defensora dos direitos naturais que lhe são mais caros, tais como a vida, a família, a propriedade, a educação dos filhos, a segurança, a saúde etc. Não poderão os nossos legisladores aprovar um Código que fere de morte a Carta Constitucional e suas regras principiológicas protetoras daqueles direitos. Se a legislação penal constitui hoje uma profusa e complexa pletora de normas punitivas, considerada uma verdadeira “colcha de retalhos”, está ela prestes a receber um novo e definitivo remendo, que trará ainda mais insegurança e intranqüilidade no seio da população brasileira.
Peçamos à Padroeira e Rainha do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, que livre o nosso país de um código penal insano e permissivo do mal do aborto e de outras práticas atentatórias contra os direitos naturais de seus filhos, para a sua maior glória e para um futuro de paz no Brasil.



AUTOBIOGRAFIA DO FILHINHO QUE NÃO NASCEU


Oferecemos aos nossos leitores a primeira parte da tradução do belo livro do célebre novelista argentino Hugo WAST (1883-1962), Autobiografía del hijito que no nasció, que narra o empolgante diálogo entre um pequenino nascituro e o seu Anjo da guarda

I – O que meu anjo conta.
Faz alguns instantes que sou um ser humano. Meu corpo ainda é tão pequeno que não pode ser visto pelos olhos de ninguém, mas minha alma já é tão grande como sempre será. Deus a criou para mim, no mesmo momento em que eu comecei a existir. Deus me ama como se eu fosse uma pessoa perfeita. Deus segue criando inumeráveis almas todos os dias, para todos os seres, filhos dos homens, que são chamados à vida. Meu anjo me disse que nascerão tantos seres quanto necessários para repovoar o céu, despovoado em um terço de seus habitantes pelo Diabo.
Estas coisas profundas para uma pessoa tão pequena como eu foram as primeiras que meu anjo da guarda ensinou. Devo explicar que tenho um anjo da guarda escolhido entre os inumeráveis anjos que permaneceram fiéis ao serviço de Deus.
Melhor ainda! Meu anjo da guarda ensinou que Deus me ama desde toda a eternidade, como se não houvesse existido outro ser senão eu. E que por mim realizou infinitas maravilhas. E assim o fez para todos os seres humanos e seu Filho morreu por cada um deles, como se fossem únicos no mundo, para salvá-los da guerra que o Diabo faz aos homens.
Eu apenas entendo tudo isso, mas ele sempre me repete e trato de reter tudo. Sem embargo, confesso que fico cansado. Queria dormir.
Meu anjo me fala sem ruído e sem palavras. É como um fluído que me penetra. Compreendo perfeitamente. Meus ouvidos, todavia não estão formados.
Ele me disse que eu sou um menininho. Ou uma menininha. Ele não sabe ou não quer me dizer. Entendo que ele sabe muitas coisas, mas que não convém me contar tudo. Ele guarda de mim uma infinidade de segredos para quando eu for maior.
Disse que se me falar demais, meu pequeno corpo vai se cansar. E é verdade, volto a sentir vontade de dormir um pouco mais.
Será minha primeira noite no seio de minha mamãe, que ainda ignora que eu existo.
Meu anjo me disse que é melhor que ela siga ignorando.
Por que não é bom que uma mãe saiba que seu filhinho ou sua filhinha já existe?
Estou cansado. Será o primeiro sono da minha vida no suave e tíbio seio de minha mãe. Que escuridão, meu Deus! É porque meus olhos ainda não se formaram?

II – Meu corpo vai crescendo.
Meus ouvidos recolhem alguns rumores de fora.
Quem é meu anjo? Como se chama?
A cada novo dia, meu anjo me desperta com uma oração. Eu ainda não posso aprendê-la porque não tenho memória. No entanto parece-me que meu corpo já não é tão pequeninho e que chego a perceber alguns rumores que vem de muito longe.
Tudo o que está fora deste rincãozinho tíbio e suave aonde vou me criando é longe para mim.
O anjo disse que um dia tudo isso me parecerá próximo e que então ele mesmo, que agora me cuida e me ensina, terá que distanciar-se de mim.
Isto me encheu de preocupações, o que significa que meu cérebro já começa a se formar.
Não me atrevo a perguntar ao meu anjo como ele poderá estar longe de mim algum dia, se Deus lhe mandou ser sempre meu guardião companheiro, e como algum dia eu deixarei de estar onde estou agora, porque haverei me desenvolvido completamente.
Não sei como expressar estas coisas raras que me ocorrem e que fariam sorrir aos homens, se pudessem escutá-las; mas nem eles, nem sequer meu anjo, as escutam, como se apenas eu mesmo me entendesse. A língua em que eu falo deve ser a língua dos anjos que se aprende em um momento. Falando sinto que sou uma pessoa. Ou seja, alguém que tem uma alma distinta das outras almas, uma alma que agora conversa com o anjo e que depois conversará com os homens, conversará com minha mamãe, com meu papai e com meus irmãozinhos.
Meu anjo me contou, e isto me deixou muito feliz, que eu tenho dois irmãozinhos, que muito tempo atrás viveram como eu, formando-se como eu estou me formando, de pouco a pouco, e agora são duas preciosas criaturas: ele tem seis anos e ela cinco. Disse-me também que eu poderia ter muito mais irmãozinhos, mas que todos morreram antes de nascer. Meu anjo disse que meu papai odeia seus filhinhos pequenos.
Não compreendi o que isto significa, mas prestei atenção aos rumores de fora e percebi uma voz que me parece ser de minha irmãzinha. É o mais maravilhoso que eu senti em minha vida.
Contei isto ao meu anjo e ele me disse que devo ter sonhado, pois meus ouvidos ainda não são aptos para escutar as coisas do mundo. Ouvira a ela, talvez, como posso ouvir aos anjos?
Tive outro sonho e não quis contar a ele, porque me parece que o ofenderia. É certo que eu não saiba meu próprio nome porque não me chamarei de nome algum até que eu seja ou um menininho ou uma menininha e me batizem, como ele me explicou. Mas o meu anjo seguramente tem um nome, distinto do dos outros anjos. Por que não me contou? Eu apenas sei que o anjo da guarda de minha mamãe chama-se Absalón, mas seu próprio nome ele tem me ocultado. Me ensina muito.
Disse-me que ainda que eu seja pequeníssimo e ele seja um anjo poderosíssimo que todos os dias vê a Deus e a Santíssima Virgem face a face, ele não pode penetrar minha alma, aonde somente Deus penetra. Cada alma humana é como uma fortaleza fechada não só aos anjos, senão também para os demônios, que não podem entrar nela se o dono dessa alma não lhe abre uma porta, ou uma janelinha, uma frestinha ao menos, para poder começar a seduzi-la com maus pensamentos.
Coisas muito difíceis de entender, mas que não esqueço quando meu anjo me diz três vezes.
Mas por que digo meu anjo, se não conheço o seu nome e estou começando a pensar que este anjo não é o meu e que eu estou como que abandonado no mundo?
Estou morrendo de sono e vou dormir sem cumprimentá-lo. Não acredito que me pertença. Devo confiar meus segredos a quem possa contá-los a outra pessoa, ainda que essa pessoa seja minha mãe?

III – Duvido que meu anjo seja meu.
Já posso me mover um pouquinho.
Não esqueci nenhuma das inumeráveis lições que vem me dando o meu anjo, melhor dizendo, este anjo. Ele afirma que sou muito inteligente, um pouquinho orgulhoso e reservado, pois não lhe conto todas as coisas que penso.
É verdade. Como vou contar que cada vez mais me afirmo na suspeita de que ele não é meu anjo da guarda, senão um intruso, e que devo tomar muito cuidado ao me comunicar com ele?
Escuto-o e aprendo. A melhor lição que me deu é a de que Deus me ama desde antes de que eu existisse com um amor imenso e que a Santíssima Virgem é Mãe de Deus e também minha mãe, outra mãe que me quer mais que a que agora me leva em seu seio.
E a pior lição, que me fez estremecer de medo, é que meu papai odeia seus filhinhos não nascidos e preferiria que morressem ou que não nascessem nunca.
Então odeia a mim? – Perguntei.
Seu papai ignora que você existe. És tão pequeninho ainda. Ai de ti se ele soubesse! – Contestou-me o anjo.
E quando eu ficar maior e ele souber que eu existo, me odiará?
Não sei; nós anjos não somos profetas. Muito temo que quando saiba que existes, ocorram coisas tremendas.
Meu papai também tem anjo da guarda?
Sim, como todos os seres humanos, como a Santíssima Virgem, que teve um grande arcanjo.
Como se chamava esse grande arcanjo?
Gabriel, e foi ele quem anunciou que ela seria a mamãe do Filho de Deus, que chamamos Jesus e que é teu irmão e também irmão de todos os seres humanos que nasceram e que hão de nascer, como você.
Ao saber que eu sou nada menos que irmão de Jesus e que a Santíssima Virgem é também minha Mãe, me sinto orgulhoso e me atrevo a interrogá-lo sobre aquilo que me desperta tanta curiosidade:
O anjo de minha outra mamãe, a mamãe da terra, se chama Absalón. E como se chama o meu anjo?
Então ele me responde:
Não quero te dizer, mas você se empenha em saber tudo. Eu sou Absalón, o anjo da guarda de sua mamãe.
E o meu anjo da guarda como se chama? Onde está?
Você ainda não tem um anjo só para ti. O de tua mamãe que sou eu cuida dela e cuida de ti. Depois, quando você vier à luz do mundo, Deus mandará um anjo que será teu enquanto você viver e te levará ao céu quando você morrer.
O dia em que eu vier à luz do mundo! – Exclamo com desilusão. – E quando vai ser isso?
Você é muito curioso! – Responde-me o anjo de minha mãe.
Estou certo de que se fosse meu próprio anjo da guarda não acharia ruim que eu lhe perguntasse tantas coisas, porque me ensinar é seu ofício e não deve se cansar nem se negar a me responder.
Fico humilhado e triste e durmo cansadíssimo.
... continua no próximo número...





RECEITA DE BRUXOS



por Cláudio da SILVA LEIRIA, Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul


Em nosso país, o que vemos hoje são cidadãos aterrorizados, desesperados, em função do crescente aumento do número de roubos e outros crimes violentos graves. Por que ocorre o aumento dessas espécies de delitos? Serão responsáveis apenas os funcionários do Executivo encarregados do planejamento da área de segurança pública? Não. Muito dessa responsabilidade cabe aos nossos operadores do Direito, encastelados em suas explicações pseudocientíficas de que o crime é produto da pobreza. Nada pode ser mais equivocado. A maioria dos brasileiros – maioria extremamente pobre, diga-se de passagem – trabalha de sol a sol, em condições adversas, ganhando salários miseráveis, e só um percentual ínfimo, desprezível, se entrega à vida de crimes.
De outro lado, a pobreza não explicaria o número expressivo de pessoas de boas condições sociais e econômicas que delinqüem – veja-se os casos dos criminosos do colarinho branco, dos membros de abastadas famílias, etc. Infelizmente, a míope visão que correlaciona de forma determinista pobreza e crime acaba propiciando um clima favorável à exculpação dos criminosos violentos, resultando daí interpretações frouxas da lei penal e a visão do criminoso como “pobre vítima” de uma sociedade “malvada”. De outro lado, os operadores do direito, em sua maioria imbuídos de uma visão marxista, insistem em fazer caso omisso dos direitos fundamentais à segurança, liberdade e propriedade das vítimas, só faltando alguns deles exclamarem, como Proudhon, que “a propriedade é um roubo”; consideram o ladrão violento como uma espécie de Robin Hood moderno, que apenas “toma” o que a sociedade injustamente lhe negou.
Também, operadores do Direito querem equivocadamente utilizar o Direito Penal como uma espécie de extensão da assistência social ou da medicina, negando o caráter essencial da pena, que é o de retribuir um mal com outro mal. Argumenta-se ingenuamente que o Direito Penal deve estar focado em “curar” o criminoso e com ele ser benevolente, valendo-se de terapias emancipadoras, ampliação de alternativas à pena de prisão e outras sanções exoneradoras da prisão.
Nossos “brilhantes” doutrinadores de Direito Penal esquecem a sábia lição de Jescheck: “O Direito Penal não pode se identificar com o direito relativo à assistência social. Serve em primeiro lugar à justiça distributiva, e deve pôr em relevo a responsabilidade do delinqüente por haver violentado o direito, fazendo com que receba a resposta merecida da comunidade. E isto não pode ser atingido sem dano e sem dor, principalmente nas penas privativas de liberdade, a não ser que se pretenda subverter a hierarquia dos valores morais, e fazer do crime uma ocasião de prêmio, o que nos conduziria ao reino da utopia”.
Como afirmado, não se pode ignorar que a finalidade principal da pena é manter isolado quem perturba de forma muito agressiva o ambiente social. Pena é castigo – e é assim nos sistemas penais de qualquer país do mundo – de forma que é necessário repudiar essa obsessão de ressocializar ou “curar” o preso às custas do debilitamento do poder punitivo estatal. Por fim, para agravar o problema, a legislação penal, ao invés de patrocinar os interesses legítimos da sociedade por mais segurança, contempla unicamente os interesses da advocacia criminal, tornando as penas cada vez mais suaves. Os advogados são extremamente organizados, constituindo-se em maioria nas comissões que sugerem e elaboram projetos das leis penais, atuando sempre, claro, pro domo sua. Essa receita de bruxos – visão míope de que a pobreza engendra o crime; o debilitamento das penas; a visão do direito penal como instrumento fundamentalmente terapêutico ou de ressocialização, a influência da advocacia criminal na elaboração das leis penais – só poderia resultar em um aumento da criminalidade, do medo, da sensação de insegurança e do descrédito da democracia como mecanismo capaz de prevenir e reprimir o crime.
Conclui-se, como bem afirmado por Pascal, que “a compaixão é verdadeiramente cruel quando leva a poupar criminosos e malvados que deveriam ser castigados com a espada da justiça. A compaixão é, então, mais cruel que a crueldade. Pois a crueldade só age contra os indivíduos; mas essa falsa compaixão, provocando a impunidade, arma e incita contra a totalidade dos homens de bem toda a horda de facínoras”.

A SACRALIDADE DO MATRIMÔNIO


José Pedro GALVÃO DE SOUSA (1912-1992), saudoso catedrático de Teoria Geral do Estado, tendo lecionado também História do Direito Nacional, não foi apenas o estudioso da filosofia política e da história, que nos deu entre outros livros, “Política e Teoria do Estado”, “Iniciação à Teoria do Estado”, “Introdução à História do Direito Político Brasileiro”, “Raízes históricas da Crise Política Brasileira” e “A Historicidade do Direito e a Elaboração Legislativa”, pois se debruçou sobre outros campos do conhecimento, nos trazendo nestas linhas que retiramos de um precioso artigo originalmente intitulado “O Divórcio e a Família do Futuro” publicado na excelente e infelizmente extinta revista Hora Presente (N. 9, Maio de 1971), lições mais do que nunca atuais.

Sacrifício: de sacrum facere. Os sofrimentos em comum, na vida matrimonial, têm o sentido de uma oblação. O matrimônio realiza-se na sua plenitude e torna-se fonte de verdadeira felicidade quando os sacrifícios que exige são oferecidos a Deus, na comum convicção dos cônjuges de que ao homem não cabe separar o que Deus uniu.
Esse sentido mais profundo do casamento encontra-se nos povos primitivos e foi expresso na limpidez dos conceitos do direito romano: nuptiae sunt coniunctio maris et feminae et consortium omnis vitae, divini et humani iuris communicatio (Modestino, D. 23. 2. 1).
Foi preciso chegar ao neopaganismo contemporâneo – muito mais perverso do que o paganismo dos antigos gentios, porque este era o de uma sociedade que viveu sem conhecer o Cristianismo nem a Revelação mosaica, mas assim mesmo tinha consciência do sagrado e respeitava a lei natural, ao passo que o neopaganismo de hoje procede uma rejeição da mensagem cristã – para que o ao casamento e à família negassem os seus fundamentos religiosos.
Como nos lembra Jean Daujat, “o mundo moderno é o mundo que rejeitou as tradições religiosas sobre cujo fundamento a humanidade vivera até ai, e que se constituiu em revolta contra o Cristianismo e contra a civilização cristã que o precedera”. (DAUJAT, Jean. O Cristianismo e o homem contemporâneo, Porto: Livraria Tavares Martins, p. 22).
O divórcio, em nossos dias, é expressão do individualismo, ou seja, do “humanismo absoluto” do homem moderno, que se manifesta em duas etapas: o individualismo propriamente dito e o coletivismo, este, resultado e continuação daquele, sendo no fundo o individualismo levado ao extremo.
Frisa-lo o mesmo autor na obra citada (p. 21-22): “O humanismo absoluto do mundo moderno pode, aliás, tomar duas formas. Na primeira, que prevaleceu aos séculos XVIII e XIX, é o individualismo que reivindica uma independência e uma soberania absolutas: a sociedade, neste caso, unicamente pode ser um contrato livremente consentido só por ele, e onde ele faz a lei. É desta maneira que se terá uma sociedade arrastada pelas tendências e interesses contrários dos indivíduos e onde desaparece a noção de bem comum”. Daí a lei do divórcio, sobrepondo o bem particular dos cônjuges ao bem comum. Tal individualismo caracteriza a sociedade liberal fundada nos princípios da Revolução de 1789.
Daí para o coletivismo é um passo: “bem depressa o indivíduo sentirá a incapacidade de exercer a soberania, e deixa-se absorver na potência da coletividade. Bem depressa igualmente os mais apetrechados explorarão e dominarão os outros. E deste modo se passará do individualismo ao coletivismo: o humanismo absoluto toma então uma forma nova que originará os regimes totalitários e que prevalece hoje cada vez mais. A reivindicação de independência absoluta transita do homem individual ao homem coletivo: é a coletividade que se atribui uma independência e soberania absolutas e se considera livre de qualquer verdade e de qualquer lei superior que se lhe imponham. O indivíduo torna-se então um simples instrumento do poder coletivo”. É o que ocorre nas sociedades comunistas.
O humanismo absoluto do homem contemporâneo é uma conseqüência da secularização ou dessacralização das mentalidades e das instituições, que teve início no outono da Idade Média e no dealbar da Renascença pagã e do protestantismo. A dessacralização penetra hoje na própria Igreja, não sendo, pois, de admirar que até mesmo certos católicos – quando não sacerdotes! – venham a público defender o divórcio, postergando assim o caráter sagrado do matrimônio.