domingo, 9 de junho de 2013

AUTOBIOGRAFIA DO FILHINHO QUE NÃO NASCEU


Oferecemos aos nossos leitores a primeira parte da tradução do belo livro do célebre novelista argentino Hugo WAST (1883-1962), Autobiografía del hijito que no nasció, que narra o empolgante diálogo entre um pequenino nascituro e o seu Anjo da guarda

I – O que meu anjo conta.
Faz alguns instantes que sou um ser humano. Meu corpo ainda é tão pequeno que não pode ser visto pelos olhos de ninguém, mas minha alma já é tão grande como sempre será. Deus a criou para mim, no mesmo momento em que eu comecei a existir. Deus me ama como se eu fosse uma pessoa perfeita. Deus segue criando inumeráveis almas todos os dias, para todos os seres, filhos dos homens, que são chamados à vida. Meu anjo me disse que nascerão tantos seres quanto necessários para repovoar o céu, despovoado em um terço de seus habitantes pelo Diabo.
Estas coisas profundas para uma pessoa tão pequena como eu foram as primeiras que meu anjo da guarda ensinou. Devo explicar que tenho um anjo da guarda escolhido entre os inumeráveis anjos que permaneceram fiéis ao serviço de Deus.
Melhor ainda! Meu anjo da guarda ensinou que Deus me ama desde toda a eternidade, como se não houvesse existido outro ser senão eu. E que por mim realizou infinitas maravilhas. E assim o fez para todos os seres humanos e seu Filho morreu por cada um deles, como se fossem únicos no mundo, para salvá-los da guerra que o Diabo faz aos homens.
Eu apenas entendo tudo isso, mas ele sempre me repete e trato de reter tudo. Sem embargo, confesso que fico cansado. Queria dormir.
Meu anjo me fala sem ruído e sem palavras. É como um fluído que me penetra. Compreendo perfeitamente. Meus ouvidos, todavia não estão formados.
Ele me disse que eu sou um menininho. Ou uma menininha. Ele não sabe ou não quer me dizer. Entendo que ele sabe muitas coisas, mas que não convém me contar tudo. Ele guarda de mim uma infinidade de segredos para quando eu for maior.
Disse que se me falar demais, meu pequeno corpo vai se cansar. E é verdade, volto a sentir vontade de dormir um pouco mais.
Será minha primeira noite no seio de minha mamãe, que ainda ignora que eu existo.
Meu anjo me disse que é melhor que ela siga ignorando.
Por que não é bom que uma mãe saiba que seu filhinho ou sua filhinha já existe?
Estou cansado. Será o primeiro sono da minha vida no suave e tíbio seio de minha mãe. Que escuridão, meu Deus! É porque meus olhos ainda não se formaram?

II – Meu corpo vai crescendo.
Meus ouvidos recolhem alguns rumores de fora.
Quem é meu anjo? Como se chama?
A cada novo dia, meu anjo me desperta com uma oração. Eu ainda não posso aprendê-la porque não tenho memória. No entanto parece-me que meu corpo já não é tão pequeninho e que chego a perceber alguns rumores que vem de muito longe.
Tudo o que está fora deste rincãozinho tíbio e suave aonde vou me criando é longe para mim.
O anjo disse que um dia tudo isso me parecerá próximo e que então ele mesmo, que agora me cuida e me ensina, terá que distanciar-se de mim.
Isto me encheu de preocupações, o que significa que meu cérebro já começa a se formar.
Não me atrevo a perguntar ao meu anjo como ele poderá estar longe de mim algum dia, se Deus lhe mandou ser sempre meu guardião companheiro, e como algum dia eu deixarei de estar onde estou agora, porque haverei me desenvolvido completamente.
Não sei como expressar estas coisas raras que me ocorrem e que fariam sorrir aos homens, se pudessem escutá-las; mas nem eles, nem sequer meu anjo, as escutam, como se apenas eu mesmo me entendesse. A língua em que eu falo deve ser a língua dos anjos que se aprende em um momento. Falando sinto que sou uma pessoa. Ou seja, alguém que tem uma alma distinta das outras almas, uma alma que agora conversa com o anjo e que depois conversará com os homens, conversará com minha mamãe, com meu papai e com meus irmãozinhos.
Meu anjo me contou, e isto me deixou muito feliz, que eu tenho dois irmãozinhos, que muito tempo atrás viveram como eu, formando-se como eu estou me formando, de pouco a pouco, e agora são duas preciosas criaturas: ele tem seis anos e ela cinco. Disse-me também que eu poderia ter muito mais irmãozinhos, mas que todos morreram antes de nascer. Meu anjo disse que meu papai odeia seus filhinhos pequenos.
Não compreendi o que isto significa, mas prestei atenção aos rumores de fora e percebi uma voz que me parece ser de minha irmãzinha. É o mais maravilhoso que eu senti em minha vida.
Contei isto ao meu anjo e ele me disse que devo ter sonhado, pois meus ouvidos ainda não são aptos para escutar as coisas do mundo. Ouvira a ela, talvez, como posso ouvir aos anjos?
Tive outro sonho e não quis contar a ele, porque me parece que o ofenderia. É certo que eu não saiba meu próprio nome porque não me chamarei de nome algum até que eu seja ou um menininho ou uma menininha e me batizem, como ele me explicou. Mas o meu anjo seguramente tem um nome, distinto do dos outros anjos. Por que não me contou? Eu apenas sei que o anjo da guarda de minha mamãe chama-se Absalón, mas seu próprio nome ele tem me ocultado. Me ensina muito.
Disse-me que ainda que eu seja pequeníssimo e ele seja um anjo poderosíssimo que todos os dias vê a Deus e a Santíssima Virgem face a face, ele não pode penetrar minha alma, aonde somente Deus penetra. Cada alma humana é como uma fortaleza fechada não só aos anjos, senão também para os demônios, que não podem entrar nela se o dono dessa alma não lhe abre uma porta, ou uma janelinha, uma frestinha ao menos, para poder começar a seduzi-la com maus pensamentos.
Coisas muito difíceis de entender, mas que não esqueço quando meu anjo me diz três vezes.
Mas por que digo meu anjo, se não conheço o seu nome e estou começando a pensar que este anjo não é o meu e que eu estou como que abandonado no mundo?
Estou morrendo de sono e vou dormir sem cumprimentá-lo. Não acredito que me pertença. Devo confiar meus segredos a quem possa contá-los a outra pessoa, ainda que essa pessoa seja minha mãe?

III – Duvido que meu anjo seja meu.
Já posso me mover um pouquinho.
Não esqueci nenhuma das inumeráveis lições que vem me dando o meu anjo, melhor dizendo, este anjo. Ele afirma que sou muito inteligente, um pouquinho orgulhoso e reservado, pois não lhe conto todas as coisas que penso.
É verdade. Como vou contar que cada vez mais me afirmo na suspeita de que ele não é meu anjo da guarda, senão um intruso, e que devo tomar muito cuidado ao me comunicar com ele?
Escuto-o e aprendo. A melhor lição que me deu é a de que Deus me ama desde antes de que eu existisse com um amor imenso e que a Santíssima Virgem é Mãe de Deus e também minha mãe, outra mãe que me quer mais que a que agora me leva em seu seio.
E a pior lição, que me fez estremecer de medo, é que meu papai odeia seus filhinhos não nascidos e preferiria que morressem ou que não nascessem nunca.
Então odeia a mim? – Perguntei.
Seu papai ignora que você existe. És tão pequeninho ainda. Ai de ti se ele soubesse! – Contestou-me o anjo.
E quando eu ficar maior e ele souber que eu existo, me odiará?
Não sei; nós anjos não somos profetas. Muito temo que quando saiba que existes, ocorram coisas tremendas.
Meu papai também tem anjo da guarda?
Sim, como todos os seres humanos, como a Santíssima Virgem, que teve um grande arcanjo.
Como se chamava esse grande arcanjo?
Gabriel, e foi ele quem anunciou que ela seria a mamãe do Filho de Deus, que chamamos Jesus e que é teu irmão e também irmão de todos os seres humanos que nasceram e que hão de nascer, como você.
Ao saber que eu sou nada menos que irmão de Jesus e que a Santíssima Virgem é também minha Mãe, me sinto orgulhoso e me atrevo a interrogá-lo sobre aquilo que me desperta tanta curiosidade:
O anjo de minha outra mamãe, a mamãe da terra, se chama Absalón. E como se chama o meu anjo?
Então ele me responde:
Não quero te dizer, mas você se empenha em saber tudo. Eu sou Absalón, o anjo da guarda de sua mamãe.
E o meu anjo da guarda como se chama? Onde está?
Você ainda não tem um anjo só para ti. O de tua mamãe que sou eu cuida dela e cuida de ti. Depois, quando você vier à luz do mundo, Deus mandará um anjo que será teu enquanto você viver e te levará ao céu quando você morrer.
O dia em que eu vier à luz do mundo! – Exclamo com desilusão. – E quando vai ser isso?
Você é muito curioso! – Responde-me o anjo de minha mãe.
Estou certo de que se fosse meu próprio anjo da guarda não acharia ruim que eu lhe perguntasse tantas coisas, porque me ensinar é seu ofício e não deve se cansar nem se negar a me responder.
Fico humilhado e triste e durmo cansadíssimo.
... continua no próximo número...





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